A arte do trauma e a importância de enfrentar o desconforto na literatura

Millena Borges
3 min readSep 29, 2024

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O aviso de gatilho, atualmente, é um recurso praticamente inevitável na literatura contemporânea, não apenas por desejo do autor e das editoras, mas por exigência do público. Embora o uso deste alerta seja uma importante forma de respeitar os limites do leitor, é preciso evitar que ele se torne um impedimento na compreensão do verdadeiro propósito da literatura.

Livros como Uma Vida Pequena, Minha Sombria Vanessa, O Peso do Pássaro Morto e Tudo é Rio, embora não se conectem em temática, foram alguns dos livros fortemente criticados na internet devido à relação com o trauma, ainda que o aviso de gatilho estivesse presente nas obras.

O livro da Hanya Yanagihara, por exemplo, foi com frequência intitulado como “trauma porn” ou, em tradução literal, “pornografia do trauma”, por expor um personagem que, ao longo dos seus mais de 50 anos de idade, experienciou o pior do que a vida tem a oferecer.

De fato, livros como estes não são para todo mundo, e é importante que esses alertas existam para que o leitor tome uma decisão consciente sobre o que irá consumir, mas caso opte, é necessário entender que o trauma tem um papel muito importante na arte, muito longe do entretenimento: o desconforto.

O desconforto na arte é essencial para criar conexão com o leitor, da mesma forma que outros recursos são utilizados com o mesmo objetivo. O trauma é inerente ao ser humano, presente em diferentes intensidades na vida de qualquer pessoa. Incorporá-lo na ficção torna a obra mais fiel à complexidade da realidade humana.

Autores podem recorrer ao trauma como forma de lidar com suas próprias experiências, mas também para criar personagens mais profundos. Isso auxilia a estabelecer uma conexão mais autêntica com o leitor, uma vez que os personagens tornam-se mais realistas quando o autor expõe todas as suas falhas, conflitos e vulnerabilidades.

No entanto, essa demanda pelo aviso de gatilho nas obras tornou-se tão grande e necessária que, no meio do processo, uma parcela do público esqueceu do porquê de ele ser utilizado. O que, uma hora era importante para avisar pessoas sensibilizadas de que aquela obra trabalhava temas gráficos, hoje serve de “muleta” para que algumas pessoas não consumam artes que não sejam exclusivamente belas ou que ofereçam apenas entretenimento, ainda que os gatilhos não sejam sensíveis para elas.

Com esse significado perdido, grande parte dessas críticas às obras sobre trauma falham em entender que a arte também pode oferecer mal-estar e desprazer na mesma intensidade que pode oferecer o oposto e que isso faz parte do seu propósito: fazer o observador sentir algo.

O desconforto provocado pelos aspectos repugnantes e devastadores da vida na literatura leva o leitor a confrontar realidades incômodas, sair da zona de conforto e explorar outras perspectivas. Exigir de um autor o não uso do trauma, mesmo aquele usado em “exagero”, empobrece as reflexões e emoções que somente podem ser geradas pelo mal-estar da percepção da vulnerabilidade humana e reduz os personagens a criaturas simples, rasas e superficiais.

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Written by Millena Borges

Entusiasta de sad songs, vegetariana, apaixonada por pets, livros, música e moda. Escrevia sobre unsolved mysteries, hoje escrevo sobre qualquer outra coisa

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