Ronnie Radke e a impunidade na cena pop punk

Por que músicos com histórico de abuso continuam relevantes?

Millena Borges
9 min readNov 30, 2020
Simple Plan anuncia saída de baixista da banda após denúncias de assédio — Foto: Johnny Louis/FilmMagic

Com a saída de David Desrosiers do Simple Plan após acusações de assédio, uma questão que sempre perturba a cabeça de fãs de pop punk ressurge: Por que esses caras sempre saem impunes?

Não é de hoje que essas acusações começaram a surgir na internet. De meados de 2010 para cá, as denúncias têm ficado mais recorrentes, mas já haviam casos públicos nos anos 90, período de mais sucesso do pop punk.

Não há dados que comprovem que as acusações cresceram com o passar dos anos, e é possível que esse não seja o caso mesmo. O aumento de denúncias de abuso na cena provavelmente se dá porque as vítimas têm se sentido cada vez mais confortáveis para contar suas histórias. Ainda assim, muitas delas são silenciadas — pelas bandas ou pelos fãs — e as histórias caem no esquecimento.

Por exemplo, em 2007, Pete Wentz, baixista do Fall Out Boy, revelou em uma entrevista para a Rolling Stones que namorou uma garota de 15 anos em 2002, quando ele tinha 23 anos. Dezoito anos se passaram e Fall Out Boy ainda é uma das bandas mais relevantes do gênero (embora não seja mais considerada uma banda de pop punk). Na verdade, a fama do quarteto só cresceu desde então. Nada aconteceu com Pete e o caso foi esquecido.

Pode parecer curioso pensar que o público mais silenciado dentro do pop punk é justamente o feminino, visto o peso dele na fanbase do gênero. Mas, quando a gente percebe como o pop punk é sustentado pelo conceito do “nice guy”, tudo parece fazer um pouco mais de sentido.

Os nice guys são aqueles homens que acreditam na ideia de friendzone: se mostram queridos, sensíveis e uma boa companhia, mas se tornam completamente temperamentais quando escutam um “não”. No pop punk, a gente nota isso nas músicas românticas que os fazem parecer como o “homem dos sonhos de qualquer garota”. Essas canções facilmente se tornam agressivas e acusatórias quando as expectativas que eles têm no sexo oposto não são atendidas.

A gente sabe que essas músicas são o que fazem as pessoas sentirem empatia por eles. E, um cara que canta “I’d do anything just to hold you in my arms, to try to make you laugh. Somehow I can’t put you in the past” jamais seria capaz de abusar de uma mulher, não é?

Aqui fica um pequeno histórico dos casos mais recentes:

2012

  • Harry Corrigan, baterista da banda No Good News, foi acusado de assédio sexual por uma fã. Ele deixou a banda.

2014

  • Jake McElfresh, vocalista do Front Porch Step, foi acusado de trocar mensagens com teor sexual com múltiplas meninas menores de idade. Ele admitiu, mas negou que houve sexo entre eles.

2015

  • Lloyd Roberts, guitarrista do Neck Deep, foi acusado de trocar mensagens com uma menor de idade. Ele deixou a banda.
  • Glenn Harvey, baterista do Moose Blood, foi acusado de enviar fotos e vídeos íntimos não-solicitados para uma fã. Ele deixou a banda em 2017.

2017

  • O vocalista do Moose Blood, Eddy Brewerton, foi acusado de roubar fotos íntimas do celular de uma fã e compartilhar no grupo do WhatsApp da banda. Eles negaram as acusações.
  • Jesse Lacey, vocalista do Brand New, foi acusado de abuso sexual. Ele também havia trocado mensagens com conteúdo sexual com diversas meninas menores de idade quando ele tinha 24 anos de idade. Ele confirmou as acusações.
  • Luke Rockets, guitarrista da banda With Confidence, foi acusado de trocar mensagens sexuais com uma menor de idade quando ele tinha 22 anos. Após as acusações, Luke deixou a banda. Dias depois, Jayden Seeley, o vocalista da banda, foi acusado de pressionar uma garota de 15 anos a lhe enviar nudes em 2013, quando ele tinha 21. Ele negou as acusações.
  • Baixista do Pierce The Veil, Mike Fuentes, foi acusado de ter relações sexuais com uma menor de idade quando ele tinha 23 anos, em 2008. Ele deixou a banda.

2018

  • Cameron Boucher, vocalista do Sorority Noise, foi acusado de estupro. Ele negou as acusações.

2020

  • David Desrosiers, baixista do Simple Plan, é denunciado por manipular e assediar sexualmente diversas fãs. Ele deixou a banda.
  • Baterista do SWMRS, Joey Armstrong, foi acusado de má conduta sexual pela ex namorada Lydia Night, vocalista do The Regrettes. O relacionamento deles começou em 2017, quando ela tinha 16 anos. Joey tinha 22.

Clique aqui para acessar uma planilha criada por fãs com uma lista de bandas na cena pop punk/punk rock com casos de abuso.

Mike Fuentes, ex baterista do Pierce The Veil, deixou a banda em 2017. Ele declarou não ter tido a intenção de manipular ou abusar de ninguém — Foto: Kane Hibberd

Poucos desses artistas realmente saíram da mídia. O vocalista do Sorority Noise, Boucher, iniciou um tratamento para depressão e, desde então, a banda esteve em pausa. Brand New está inativo desde 2017. No entanto, outras bandas como SWMRS e Front Porch Step continuam produzindo música.

Mesmo que os casos acima sejam o suficiente para enojar qualquer um, isso sequer é a ponta do iceberg. Um caso ainda maior e perturbador não só existe como recentemente deu uma entrevista para a Forbes.

Ronnie Radke coleciona problemas com a lei e comentários problemáticos na internet — Foto: Reprodução/Youtube

Ronnie Radke é o vocalista da banda Falling in Reverse, ex vocalista do Escape The Fate. Radke tem 36 anos e uma lista criminal perturbadora. Em 2006, Ronnie se envolveu em uma briga de bar que resultou em um homem gravemente ferido e um jovem de 18 anos morto após o disparo de uma arma de fogo. Apesar de não ter sido a pessoa que atirou, Radke foi preso por ter violado sua liberdade condicional em 2008.

Em agosto de 2012, Ronnie foi preso por violência doméstica após denúncias de sua ex-namorada, Sally Watts. Ele pagou fiança de US$30mil. Em outubro daquele mesmo ano, Radke foi preso novamente após jogar três tripés de microfone na plateia durante um show em Nova Jersey, EUA. Um homem e uma menina de 16 anos ficaram feridos. Ele foi solto após pagar uma fiança de US$25mil.

Assista ao vídeo do momento em que os tripés são arremessados (A partir de 4.13 minutos)

Em 2015, ele foi acusado de estupro. A pessoa contou no Facebook ter ficado com o nariz quebrado, hematomas pelo corpo, contusão na mandíbula e com os ligamentos da garganta cortados após a briga. Radke negou as acusações.

De tempos em tempos, Radke publica uma série de tweets ofensivos na internet. Muitos deles são apagados em seguida, mas ainda é possível encontrar comentários preconceituosos nas suas redes sociais. Veja alguns exemplos:

“Não deixe que a mídia te diga que são brancos racistas que estão cometendo assassinatos em massa. São todas as raças, principalmente homens. Eles só falam dos caras brancos porque serve pra narrativa deles”
“Se você nasceu com um pênis em 2019, isso faz do médico transfóbico por classificar o bebê como homem sendo que ele têm órgãos sexuais masculino? Basicamente a ciência é transfóbica porque eles não esperam o bebê ter idade para perceber que ele é, na verdade, uma mulher. Entendi”
“Cansado de ver esses filhos da p*ta sendo mulherzinhas”

Neste tweet, Radke comenta um episódio que ocorreu na Warped Tour 2017, onde o vocalista do The Dickies xingou uma mulher que segurava um cartaz escrito “Garotas adolescentes merecem respeito, e não piadas nojentas de velhos nojentos.” No texto de Ronnie, ele diz “[…] Warped Tour costumava ser um local onde qualquer coisa dita era aceita, agora você tem que tomar cuidado com o que diz porque alguma Feminazi branca louca que é pró-negros vai começar um blog no Youtube e discutir isso no quarto dela […]”

Na matéria da Forbes, publicada em março de 2020, Ronnie é descrito como “um dos verdadeiros rockstars da cena” e “o catalizador que o mundo do rock precisa no momento”. Nenhuma menção aos delitos dele é feita.

Entre crimes e tweets problemáticos, Radke continua produzindo músicas para o Falling in Reverse e sendo adorado por centenas de fãs ao redor do mundo. O que nos leva de volta à pergunta inicial:

Porque esses homens saem impunes?

Fama não necessariamente é um fator importante para essa questão. Principalmente porque muitos desses artistas citados não são conhecidos fora do gênero musical (com exceção de Simple Plan e Fall Out Boy). Talvez a resposta seja mais simples: a culpa é do sistema patriarcal. Afinal, esses homens, no lugar de músicos, exercem poder sobre as fãs, sendo elas menores de idade ou não.

É muito fácil manipular uma mulher sendo um homem em uma situação de poder. É mais fácil ainda fazer isso quando ela passou parte da vida admirando seu trabalho. E a impunidade faz parte de toda uma cultura de culpabilização da vítima.

A BBC News levantou um ponto importante sobre esse tipo de manipulação e envolve o chamado “groupie culture”. Groupie culture ou, em tradução livre, cultura de groupie é a glamorização das groupies (fãs que vão a shows com a intenção de ter relações sexuais com os músicos).

Os fãs influenciados por essa cultura acreditam que ela é uma maneira fácil de estar próximo de seus artistas favoritos. Ser groupie é, muitas vezes, visto como sinônimo de ostentar a vida de backstage, andar com a banda e, até mesmo, estar na banda.

Diversos fãs que contaram suas histórias de abuso para o Radio 1 Newsbeat, como relata a matéria, acreditam que a cultura de groupie é a principal culpada pelo abuso sexual que sofreram. Havendo ou não arrependimento da parte de meninas que tiveram relações com seus ídolos, é inegável o papel da manipulação nesses casos.

Esse domínio sobre as fãs começa bem antes do primeiro encontro, e pode ser percebido nas entrelinhas das letras acusatórias e das músicas “românticas” manipuladoras. É difícil não ser influenciada ao ouvir a banda que você admira cantar sobre “mulheres que não prestam”, especialmente quando se é tão jovem. É nesse momento que surge o sentimento de que você é diferente de outras garotas (ou que você tem que ser). Nasce a rivalidade feminina.

If it makes you less sad, I’ll move out of the state. You can keep to yourself, I’ll keep out of your way

(Se isso te fizer menos triste, eu vou me mudar do estado. Você pode ficar sozinha, eu vou ficar fora do seu caminho)

The Boy Who Blocked His Own Shot do Brand New é o exemplo perfeito de manipulação. A música narra um homem arrependido pelos atos que cometeu e que levou ao fim de seu relacionamento. Ao final da música, no entanto, é possível notar como ele torce a história para culpar não mais a si mesmo, mas a ex-namorada.

So call it quits or get a grip. Say you wanted a solution, you just wanted to be missed

(Então acabe com isso ou tome um jeito. Você diz que quer uma solução, mas você só quer que sintam sua falta)

São diversas as canções que colocam mulheres em situações questionáveis. O uso da rivalidade feminina para fazer elogios a umas mulheres e humilhar outras era bastante presente nas músicas nos anos 2000 e 2010. Uma coisa em comum que todas essas canções demonstravam era o claro ódio por mulheres que reconhecem a própria beleza, não têm vergonha de ter uma vida sexual “agitada” e, é claro, dizem “não” quando não estão interessadas.

You went and fucked this up ’cause you couldn’t keep your legs shut (Você foi e f*deu com isso tudo porque você não conseguia manter as pernas fechadas)

Neck Deep — What Did You Expect?

Do you look yourself straight in the eyes and think about who you let between your thighs? (Você se olha nos olhos e pensa sobre quem você deixa estar entre suas coxas?)

The Story So Far — Mt. Diablo

I need a girl that I can train (Eu preciso de uma garota que eu possa treinar)

Blink 182 — Dumpweed

She called the cops, and made it seem like I was mean. She’s not your average lady, she’s fucking crazy. Spelled C-U-N-T (Ela chamou a polícia e fez parecer como se eu fosse ruim. Ela não é uma moça comum, ela é louca pra c*ralho. Soletra-se P-U-T-A)

Falling in Reverse — Bad Girls Club

A combinação de todos esses elementos é uma poderosa arma nas mãos desses músicos. Eles possuem o poder de manipular mulheres com suas músicas cheias de sentimentos de auto piedade, e um exército de pessoas igualmente manipuláveis prontas para defendê-los caso o tiro saia pela culatra. É um ciclo vicioso onde o culpado nunca recebe sua sentença. Ao menos, não após a vítima ter sido humilhada publicamente por aqueles que, por sorte, não estiveram na mesma posição que ela.

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Millena Borges

Entusiasta de sad songs, vegetariana, apaixonada por pets, livros, música e moda. Escrevia sobre unsolved mysteries, hoje escrevo sobre qualquer outra coisa