Uma Vida Pequena é uma história de amor
Análise sobre a obra de Hanya Yanagihara
*Esse texto contém pequenos spoilers sobre a obra Uma Vida Pequena, de Hanya Yanagihara
Uma Vida Pequena é um livro com muitas controvérsias e eu até entendo a razão. Meu objetivo não é julgar todas as resenhas negativas que esse livro recebeu, na verdade, eu entendo como muitos conseguem chegar no final dessa leitura sem a aprovarem. No entanto, pretendo, sim, criticar a ideia de que esta obra é um torture porn (em tradução livre, pornô de tortura), como muitas resenhas sugerem.
Embora existam tópicos que podem levar a essa conclusão — estou falando unicamente da escolha da autora para a capa do livro, uma fotografia de Peter Hujar, intitulada Orgasmic Man (1969), que captura a imagem de um homem durante o orgasmo — chamar Uma Vida Pequena de torture porn soa como uma generalização tão insensível quanto vazia. A obra de Yanagihara é crua, melancólica e, muitas vezes, desesperadora, mas, acima de tudo, também é uma história de amor.
Uma Vida Pequena, de Hanya Yanagihara, gira entorno de Jude St. Francis, um homem que, durante toda sua vida, lidou com muitos traumas. Na faculdade, Jude encontra apoio em três amigos: Willem, JB e Malcolm.
Embora a história seja permeada das dores — físicas e emocionais — de Jude, Uma Vida Pequena trabalha como ninguém os relacionamentos que ele construiu durante a vida adulta: os relacionamentos platônicos.
A amizade dos quatro não é uma superficialidade no livro. Os amigos lidam com problemas que constroem e testam a relação do grupo, ao mesmo tempo que solidificam cada um como indivíduo e não apenas como um personagem secundário. Mas mesmo com todo o drama que atravessa uma amizade da juventude e se fortalece durante todas as dificuldades da vida adulta, o comprometimento com o bem-estar de Jude sempre foi o ponto de retorno.
A medida que o livro avança, aos poucos, o leitor pode olhar para dentro da vida de Jude. Desde o início, fica claro que o personagem passou por alguns problemas, em especial relacionados as dores na perna, mas é apenas após conhecer todos os amigos de Jude que Yanagihara permite que o leitor enxergue o passado do personagem principal.
De forma muito sutil, a autora revela para o leitor que os amigos não apenas cuidavam de Jude, mas faziam coisas inconscientemente para tornar a vida dele mais fácil. Já nas primeiras páginas, Willem cuida de Jude durante uma de suas crises de dor, o primeiro contato do leitor com as dores do personagem. Algumas páginas depois, a autora apresenta os cuidados do ponto de vista de todo o grupo. Em uma primeira leitura, o momento pode passar despercebido.
“[…]Andavam particularmente devagar em consideração a Jude, porque as calçadas estavam escorregadias. […] Jude no meio, com Malcolm de um lado e Willem de outro, pertos o bastante (ele sabia, tendo ele mesmo ocupado a posição) para segurá-lo se escorregasse, mas não tão próximos que Jude pudesse suspeitar que esperavam sua queda. Nunca combinaram essa estratégia, na verdade: simplesmente a colocaram em prática”.
As atitudes do grupo ficam mais genuínas quando nos damos conta que, assim como nós, leitores, eles jamais souberam a história por trás da sofrida vida de Jude. Eles cuidam de Jude porque se importam com ele, não porque sabem que este é o certo a fazer.
Ao avançar da história, ao mesmo tempo que algumas coisas são esclarecidas para nós, outras também se fazem entendidas para os amigos de Jude. Não posso deixar de pensar que essa estratégia literária foi essencial para fazer o leitor sentir-se como um quinto membro do grupo e se tornar mais empático para com os personagens.
Em quase 800 páginas do livro, Yanagihara nos dá acesso a mais de 50 anos da vida do personagem principal. É muito difícil ler uma história tão visceral e não se sentir conectado com Jude e terrivelmente arrasado com a história dele, e talvez essa seja a única versão de quem entendeu a obra como uma história sobre dores e traumas. No entanto, é crucial entender o papel que os amigos tiveram em tornar a vida de Jude um pouco feliz para poder enxergar o verdadeiro objetivo da obra, contar uma história sobre amor fraterno.
A pessoa que enxerga essa história como torture porn, me parece, esperava descobrir o passado horrível de Jude e encontrar, no presente, a possibilidade de um futuro otimista. A realidade é que coisas ruins continuam a acontecer com o personagem ao longo da vida, e se a ideia do torture porn é satisfazer uma pessoa sadista, temo dizer que a autora falhou.
Os dramas de Jude estão muito mais atrelados ao seu passado do que aos acontecimentos da vida adulta. O que acontece com Jude durante o “presente” são fatalidades que surgem ao longo de, mais ou menos, 25 anos de vida, não 25 páginas do livro. São situações que, na maioria das vezes, estão interligadas com traumas do passado não superados. Se a autora permitisse que Jude superasse tão facilmente uma infância traumática, o livro soaria como uma obra amadora, irrealista e maldosa.
Enxergar esse livro através das dificuldades de engolir uma vida tão difícil como a de Jude St. Francis não é apenas um desserviço a essa leitura, mas uma opinião no limiar do egocentrismo, onde a preocupação está no desconforto que o livro causa, e não na história por trás dele.
Enxergar relevância apenas no horrível passado de Jude e as presentes tragédias, é ignorar a importância de ter uma rede de apoio como a do personagem.
A indicação pode ser uma irresponsabilidade quando feita de forma leviana, mas há alguns desconfortos que valem a pena serem vividos. O verdadeiro show de torturas seria finalizar essa leitura sabendo que o grupo onde Jude se apoiava era formado por pessoas vazias, rasas, alheias ao mundo e completamente despreocupadas com os traumas de uma infância dolorosamente cruel e uma vida adulta repleta de aflições.
*Uma Vida Pequena trata de assuntos como abuso sexual, pedofilia, suicídio, automutilação, violência, relacionamentos abusivos e prostituição infantil. Confira a lista de gatilhos antes de iniciar a leitura.